Repúdio à banda New Hit em Fortaleza. Foto: Viktor Braga
No dia 31 de março de
2013, Fortaleza foi violentada ao receber o show da banda de pagode New Hit. Os
integrantes da banda estão respondendo em liberdade a acusação de estupro de
duas meninas menores de idade, fato ocorrido em agosto do ano passado, na
cidade de Ruy Barbosa, na Bahia. O laudo da perícia já saiu e os exames
comprovam que sim, houve estupro. Aí você se pergunta: e por que eles ainda não
estão presos? E eu sinto muito em dizer que não sei. Realmente não sei. De
acordo com o Art. 1 da Lei 7960, III, f -
discorre: Caberá prisão temporária: quando houver fundadas razões, de acordo
com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do
indiciado nos seguintes crimes - (...) f) estupro. Se a própria lei manda que
prenda, quem manda soltar? Quem manda interromper um julgamento na metade por
falta de testemunhas a favor dos réus? Tudo anda muito estranho nesse país: as
meninas estupradas são acusadas e ameaçadas e os estupradores fazem show Brasil
a fora.
Mas
preparem-se estupradores: no Brasil inteiro há também gente que não tá de
acordo com vocês, pessoas que não financiam a cultura do estupro, que não
julgam a mulher pela roupa que ela veste e que não vão deixar o povo esquecer o
que vocês fizeram. E essas pessoas estavam ontem na Praia do Futuro, em frente
à barraca Master Beach, protestando contra esse absurdo! Não éramos os 414 que
confirmaram presença no Facebook. Éramos bem menos, mas nem por isso a voz
falhava ou o medo tomava conta: a gente tava com a razão, estupro é crime, não
é verdade?!
Chegamos
lá à tarde, perto das 15h, com panelas, latas, colheres de pau, cartazes e um
megafone e gritávamos palavras de ordem. Mulheres e homens indignados e que não
se calariam diante da injustiça! “Poderia ter sido qualquer uma de nós,
qualquer uma de vocês. Não podemos deixar acontecer!”
Por
muito tempo a gente gritou em frente à barraca. Pessoas se aproximavam para
comprar os ingressos e se perguntavam o que era aquilo. “Achei um absurdo! Como
pode eles tocarem ainda?”, se perguntava um dos jovens que se aproximava do
movimento. Alguns, acreditem, ainda nem sabiam do que tinha acontecido (e você
aí achando que o Face é o novo canal de notícias do mundo...) e ficavam
transtornados quando ouviam. Teve quem desistisse do show, o que para nós já
era uma vitória.
“Odeio
violência”, disse uma senhora com quem conversamos na praia. E é essa mesma a
palavra: violência. Porque sexo é uma coisa, sexo com violência é estupro.
A
entrada do show foi modificada devido à movimentação na porta da barraca. Nós
nos mudamos também. Quando as pessoas perguntavam “Qual o seu objetivo com
isso? Vocês podem fazer o barulho que for e eles ainda vão tocar!” Nosso
objetivo maior era sim impedir o show; mas, além disso: queremos fazer barulho,
incomodar, mostrar que a gente não esqueceu e que eles ainda vão pagar pelo
crime! Nossa vitória era ver que isso realmente acontecia: a barraca, seus
produtores, donos, seguranças e colaboradores estavam muito incomodados ao
ouvirem que, contratando uma banda acusada de estupro, estavam de acordo e
financiando a cultura do estupro.
O
Conselho Tutelar foi chamado e apareceu com a Polícia Militar: havia denúncias
de que a festa estava recebendo menores de idade. Mal a van do Conselho
estacionou, a produção fixou o cartaz “Entrada somente para maiores de 18 anos
mediante aprovação de documento de identidade”, até então inexistente. O
Conselho Tutelar saiu ainda com dois menores, os únicos encontrados na festa.
Nessa
hora, pessoas ligadas à produção da festa vieram falar conosco: questionaram as
pichações no local e argumentaram que gastaram dinheiro com a reforma. “Foram
vocês?”, perguntaram; não, não fomos nós. Foram pessoas que estão indignadas
com essa palhaçada de financiar estuprador! Ouvimos nessa hora os maiores
absurdos do dia: segundo uma senhora ligada à produção do evento, os produtores
questionaram o dono da barraca sobre a contratação dessa banda,
especificamente, afinal, era claro que geraria polêmica. O dono respondeu,
segundo a produtora, que estava consciente de tudo, mas que o fato deu ibope
para a banda, tornando-a conhecida, e que era isso que ele queria para a
barraca dele. “Ou seja: ele está, conscientemente, financiando o estupro e
lucrando em cima do crime?”, perguntamos à moça, que se limitou a dar os ombros
e sorrir. Aproveitando sua disposição em dialogar, questionamos o que ela
achava do fato, do estupro e da repercussão que estava tendo. Ela nos disse que
há anos trabalha com swingueira, mas, segundo ela, não gosta disso (Ah!
Permita-me: moça, melhore! Vá fazer algo que você ama!). Segundo ela, é normal
ver fãs entrarem nos ônibus e fazerem sexo com os componentes das bandas. “Sim,
sexo é uma coisa normal, mas estupro?”, perguntamos. E ela respondeu “Sabe o
que aconteceu ali? Essas meninas perderam o controle da situação.” Sim, nós
sabemos, mas não justifica, “Justifica?!” E ela disse que não... “Mas as
meninas sabiam que aquilo poderia acontecer!” E eu pergunto de novo:
justifica?! “E se fosse sua filha?!”, questionamos. Ela respondeu enfaticamente
“Minha filha não anda em swingueira”. Moça, isso não acontece só nesses shows,
isso acontece no mundo todo, em qualquer lugar! Aliás, há pesquisas que indicam
que a maioria dos casos de estupro acontece dentro de casa e são cometidos
pelos próprios companheiros e pessoas de confiança das mulheres. Ela revidou “O
crime acontece em qualquer lugar, a gente não pode ficar peneirando pra passar
só quem não tem crime nenhum. Não ia sobrar ninguém.” Pois que não sobre. Que
não sobre nenhum estuprador livre por aí. E que fique claro: podia ser sua
filha, mas, mesmo que não seja, mesmo que não seja nenhuma de nós e que nunca
tenhamos visto os rostos das vítimas, isso não nos impede de lutarmos para que
seus direitos sejam respeitados e que a justiça seja feita. Mexeu com uma,
mexeu com todas.
O
maior dos absurdos escutamos de um senhor também ligado à produção do evento.
Muito chateado pelo Conselho Tutelar ter entrado na festa, ele veio conversar
conosco e disse “A menina que entra numa festa dessas, sabe muito bem o que
pode acontecer.” Um dos nossos companheiros questionou: “Então é como se as
meninas assinassem um termo de compromisso dizendo que se forem estupradas em
festas como essas é culpa delas?!”. O produtor sorriu e balançou os ombros,
“Como se fosse”.
Foto: Viktor Braga
Esse
tipo de diálogo não nos leva para canto nenhum, mas é bom de ser travado para
que vejamos com que tipo de gente estamos lidando: pessoas que culpam a vítima
pela violência sofrida, que acham normal mulheres serem estupradas e criminosos
estarem à solta; pessoas que não se importam umas com as outras e que não
discutem, não se indignam e não acham importante manifestar-se contra a
violência. É, machismo mata, todos os dias; cruzar os braços diante das
injustiças também.
Com o
passar das horas, estávamos cansados, com fome e pouca energia para
continuarmos. Aos poucos, cada um foi voltando para a sua casa. Mas isso não é
uma derrota, pois, vale lembrar, nossos objetivos, já mencionados, foram
cumpridos, companheiros!
Era
por volta das 20h quando o ônibus da banda New Hit chegou. Antes de entrarem na
barraca, eles rezaram dentro do ônibus. E eu fico me perguntando: teríamos o
mesmo deus? Não sei. Debate muito profundo para o momento. Sob palavras de
ordem e cartazes de acusação, a banda entrou na barraca, de forma muito madura,
dando língua para quem os chamava de estupradores.
Para
fechar com chave de ouro, um rapaz que trabalha com a banda passou por nós e
disse “Comunismo consciente!”, apontando para o boné em sua cabeça, bordado com
a foice e o martelo. Oi?! Primeiro que o fato de se indignar e protestar contra
as injustiças não faz da pessoa comunista, segundo que... o quê?! É uma piada?
Não entendi! Ele então volta: “Sou militante comunista há mais de 12 anos. A
mídia está manipulando vocês; vocês estão sendo usados. Vocês vão ver: vai ser
tudo provado.” Então eu me lembrei que fomos filmados durante o ato. Jogaram
pedras em nós e filmaram nossas caras. Assim, tenho um recado pra mídia e para
os cinegrafistas de celular que estavam dentro da barraca: divulguem! Postem!
Coloquem no Facebook, no Vimeo, no Youtube, nos blogs... Divulguem! Essas são
as caras de quem não se cala! São os rostos de quem não descansa até que a
justiça seja feita! E já dizia Che: “Se você treme de indignação perante uma
injustiça no mundo, então somos companheiros!”
Fotos de Viktos Braga, Fortaleza, 31 de março de 2013
Fotos de Viktos Braga, Fortaleza, 31 de março de 2013




Nenhum comentário:
Postar um comentário